segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Fernando Aguiar - POESIA: OU A INTERACÇÃO DOS SENTIDOS

POESIA: OU A INTERACÇÃO DOS SENTIDOS

1.

POESIA: OU A INTERPENETRAÇÃO DOS SIGNOS

Vivemos o tempo do signo. O tempo em que a poesia deixou definitivamente os discursos para entrar no domínio das formas, no terreno do audio-visual e na dimensão do táctil. Aliás, não poderia ser de outro modo, considerando que toda a nossa estrutura vivencial se baseia nos indícios, nos sinais, nos símbolos, nos códigos.

É numa floresta semiótica que existimos e comunicamos.

Neste contexto, as palavras, como único recurso expressivo da poesia, tornaram-se um limitado campo de acção perante todos os processos informacionais e cibernéticos que actualmente dispomos. Por outro lado, as imagens têm um maior poder comunicativo pela sua intensidade, pelo movimento implícito ou explícito, pela textura, pela cor, pela força das formas, pela tépida vibração que sentimos, ao olhar. E principalmente pelo instantâneo da leitura. As imagens como linguagem total são apreendidas simultânea e globalmente tornando de certo modo obsoleta a leitura linear e sequencial. Com quantos mais códigos o poema lidar, maior será a sua capacidade de transmitir e de ser assimilado. Por esta razão, e ao contrário da linguística, a semiologia vai tendo uma importância crescente no acto da escrita.

A poesia procura, mediante o uso de uma diversidade de sinais, estimular a capacidade de raciocínio e de relacionamento do leitor, criando um envolvimento mais profundo do seu sentido crítico-perceptivo. E, como pelas circunstâncias são forçadas a isso, as pessoas vão dominando com uma renovada habilidade os diferentes conjuntos de signos que, aos poucos, vão sendo imprescindíveis a um equilíbrio interior e na sua relação para com a sociedade.

Quantos mais códigos dominarem e, principalmente, quanto maior for a sua capacidade de relacionar esses códigos entre si, mais aptos estarão a entender o que (n)os rodeia. E é por todas as situações do nosso quotidiano serem cada vez mais codificadas, que a poesia vai, necessariamente, dominar a linguagem dos signos.

O poeta tem que desenvolver incessantemente as capacidades de todas as áreas da linguagem e, para isso, deve não só dominar a multiplicidade expressiva dos signos, como também os deve transformar em signos e linguagens novas, isto é, deve ser ao mesmo tempo o cientista e o designer da palavra. Cientista como agente explorador de novas formas de linguagem, e designer no sentido de potenciar esteticamente a linguagem criada.

Herbert W. Franke considera que a arte «se revela como fenómeno do domínio da informação». Como tal, é na criação de novas linguagens, da estética a inferir, e do meio a usar como veículo na transmissão do poema que se situa a (inter)acção do poeta como mediador (in)formativo e in(ter)ventivo.

2.

POESIA: OU A INTERVENÇÃO VIVA

A arte tem como principal finalidade provocar para obter uma reacção. E fá-lo por um processo comunicativo, do qual a informação é uma parte essencial.

Qualquer objecto ou acção artística apenas intervém quando contém em si algo de novo. Esse aspecto é precisamente a componente informativa do todo que representa a comunicação.

A informação, no poema, pode dar-se a diversos níveis. A nível de técnicas e de tecnologias, a nível estético, a nível dos referentes, a nível dos diferentes significantes e dos seus significados e, principalmente, a nível dos meios de expressão. Só contendo uma carga informativa num, ou em todos esses sectores, o poema pode interferir de uma forma crítica e ser criativamente actuante.

No princípio dos anos 70 a poesia visual, ao exprimir-se quase que exclusivamente através do livro, encontrava-se limitada a nível de suporte. Ultimamente começaram a ser utilizados outros meios para veicular a «palavra» poética. Meios com as suas características e potencialidades próprias. Meios que abriram definitivamente as portas da poesia para outros caminhos. Aí, os trilhos começaram agora a ser explorados.

Neste momento, e sob a pressão de uma série de factores conjunturais e vivenciais exteriores ao «produtor de imagens» poéticas (como diria N. Hadjinicolaou), existe uma tendência para as artes se complementarem e interaccionarem.

Do mesmo modo, e para além das capacidades individuais de cada meio de expressão, as possibilidades de permutação e de consequências vêem-se infinitamente alargadas quando da utilização associada ou integrada desses meios, de onde resultam trabalhos plenos de referências e de ilações.

Numa perspectiva de complementaridade e de totalidade da percepção, e visto que cada meio «traduz» a mensagem segundo as suas características técnicas e tecnológicas (M. Mcluhan), o poema veiculado por um conjunto de meios possibilitará uma visão mais diferenciada e diversificada de si mesmo, e poderá ser mais facilmente apreendido na sua globalidade.

Nesse sentido, a intervenção directa do operador poético ou a chamada performance, é talvez o meio que mais se presta a esta conjugação, porque pode conter e relacionar-se facilmente com todos os outros veículos expressivos, e apresentar o poema com um máximo de elementos para a sua compreensão.

A performance possui uma série de componentes que podem ser explorados esteticamente. Conceitos como o tempo, o espaço, o movimento/acção, a tridimensionalidade, a cor, o som, o odor, a luz e, principalmente, a presença do poeta como despoletador e factor de consecução do poema, interligado a uma quantidade ilimitada de objectos, intenções, técnicas e tecnologias, revolucionam completamente a leitura do poema conferindo-lhe uma outra dimensão, e proporcionando ao leitor/fruidor o «poema» total, o poema na sua plenitude comunicacional e informacional.

Todas as performances contêm dois conceitos básicos: o espaço onde esta se desenrola, e o tempo em que se desenvolve.

O tempo e o espaço são aqui eliminados como conceitos separados e formam como que a «tela», ou poeticamente falando, a «página», onde tudo pode/vai acontecer. Estes dois conceitos definem o limite espaço-temporal dentro do qual a acção poética se concretiza, e que, juntamente com o facto destas intervenções terem um carácter efémero e de serem normalmente irrepetíveis, de nelas estar sempre presente o factor improviso (apesar de toda uma prévia estruturação), a acrescentar à impossibilidade de apropriação individual como valor económico, e à articulação criador/fruidor que é diferente em relação a outros comportamentos artísticos são, no seu conjunto, os principais elementos para uma leitura e compreensão da performance como meio de expressão com características específicas.

Pegando na opinião de Décio Pignatari sobre o happening, a performance também se pode considerar a «Arte de acção, contra arte de contemplação». A presença física do operador poético é um dos factores mais importantes daquilo que se pode considerar por poesia viva. Viva porque contém precisamente a forma viva do seu criador. Viva porque o (pro)pulsar/o movimento/o respirar do corpo fazem parte integrante do poema, como instigadores do desenvolvimento e da concretização do mesmo. O poeta é o despoletador da acção, e todos os seus gestos, toda a sua expressividade mímica emite informações, parafraseando uma linguagem rica de signos e significados.

A circunstância de o poeta estar no centro da acção, confere ao poema uma noção de objectualidade que representa, de certo modo, (um)a ligação entre este e o fruidor. A esta faceta táctil da «poesia viva», sobrevém imediatamente a tridimensionalidade. O volume dado pela multiplicidade de objectos e também pela presença, em movimento, do operador poético.

Embora o movimento nem sempre esteja explícito nos diferentes componentes que integram o «poema vivo», ele existe na animação impressa aos objectos manipulados, no balanço/ritmo sonoro, na luz/cor, ou ainda pelo movimento próprio de outras utilizações simultâneas como o texto-video, a projecção de diapositivos, etc., etc.

A exploração da cor na intervenção poética é uma referência directa à integração da pintura na performance, assim como a tridimensionalidade é uma inclusão do conceito de escultura na escrita. Os diferentes tipos de arte convergem na performance, para em conjunto resultarem numa interacção expressiva, assim como a nível tecnológico os diversos suportes se haviam conjugado para dar origem a uma inter-dicção de meios de comunicação. «… os meios, como extensões dos nossos sentidos, estabelecem novos índices relacionais, não apenas entre os nossos sentidos particulares, como também entre si, na medida em que se inter-relacionam.», escreve M. Mcluhan.

O som, outro elemento de leitura da intervenção poética pode apresentar-se sob diversas formas. O ritmo, a melodia, ou apenas o ruído, representam estruturas sonoras que nem sempre são acessórias, mas contribuem para o conjunto de signos a serem descodificados. Nesta área englobam-se, além da voz, tanto os sons produzidos por instrumentos próprios, e/ou considerados «impróprios», como os sons ambientais ou os resultantes de actividades industriais.

Natural ou artificial, temos também a luz como veículo de leitura do poema. Artificial pode ser uma fonte de efeitos, pela possibilidade de transformação e de transmutação cromática dos diferentes elementos.

Finalmente há a considerar o uso de letras/palavras, apresentadas por diferentes processos, como principal factor definidor da noção de poema (do poema vivo), como intervenção estética.

A poesia, enquanto processo interventivo deve dar, mediante a exploração dos diversos campos comunicacionais, a percepção do simultâneo que, na prática, já vivemos.

Edmund Carpenter e Marshall Mcluhan escreveram na introdução do seu livro «Revolução na Comunicação» que «Os meios electrónicos de comunicação do homem pós-letrado contraem o mundo, reduzindo-o às proporções de uma aldeia ou tribo onde tudo acontece a toda a gente ao mesmo tempo: todos estão a par de – e, portanto, participam em – tudo o que está acontecendo, no minuto em que acontece.»

A performance proporciona e reivindica também uma leitura simultânea de todos os aspectos que a compõem, no momento em que acontece.

O fruidor deverá fazer uma leitura integral da intervenção poética, como um todo que ela na realidade é, e não se deve limitar em apanhar somente o significado daquilo que vê, pois este é apenas um dos componentes do acto poético. Para isso tem que haver um sincronismo no emprego dos sentidos, para uma decifração e compreensão do poema e, consequentemente, uma participação crítica.

A súmula de uma intervenção poética reside precisamente no binómio acção/reacção. E aqui aplica-se o pensamento de Marcel Duchamp quando afirmou que «O artista não realiza sozinho o acto de criação, pois o espectador estabelece o contacto da obra com o mundo exterior, decifrando e interpretando suas qualificações profundas, e, agindo desta forma, acrescenta a sua contribuição ao processo criativo». Entre o operador poético e o «leitor» existe uma relação empática directa, pela participação deste no trabalho daquele, onde o feed-back poderá, inclusive, modificar o próprio rumo do poema, alterando sempre o seu significado. Como a leitura do poema dá-se em simultâneo com o seu desenrolar, e como a reacção dá-se sincronicamente com a leitura, o feed-back é imediato, passando por vezes, o consumidor a ser também o produtor e vice-versa.

O facto de o poema-acção se desenrolar perante o «leitor», está directamente relacionado com o extraordinário desenvolvimento dos meios de comunicação, isto é, de termos a possibilidade de tomar conhecimento das diferentes ocorrências em qualquer parte do mundo simultaneamente a elas acontecerem.

A performance poética contém esse aspecto de sincronismo de acção/reacção que torna o poema vivo. As pessoas assistem ao nascer e ao término do poema. Vêem quem cria e como se executa o poema (ajudam, por vezes, a criá-lo), reagindo no momento em que este toma corpo. A performance possibilita o criar-se e o estar ali para ver. Possibilita a informação integrada recíproca e instantânea. Apela à participação. O que contém algo de umbilical.

A circunstância do poema ser usufruído colectivamente por este meio em vez da sua leitura individual através do livro (que tal como a porta é um incentivo ao isolamento, segundo David Riesman), representa um extraordinário avanço da poesia no sentido do social. Deste modo, a transmissão da «mensagem» resulta numa experiência comum.

Numa altura em que os meios de comunicação sofreram uma evolução espantosa, mas onde, paradoxalmente, não existe comunicação entre as pessoas, o contacto directo entre o público e a obra/autor ganha uma outra intensidade ao (re)estabelecer o diálogo entre os seres em si e entre os seres e os objectos/actos artísticos.

A interacção na intervenção poética faz-se não só entre os diferentes materiais e tecnologias, como entre o criador/acção poética, acção poética/fruidor e fruidor/criador. São precisamente estas relações que a performance vem provocar, o diálogo poeta/público, mediado pelo desenrolar do poema.

E se por um lado deixa de existir o indivíduo possuidor da obra única (do qual é o único usufrutuário) para passar a haver (um)a criação poética que vai beneficiar o colectivo, por outro lado mantém-se, ainda, o carácter do único, porque de uma maneira geral estas intervenções não são repetidas, ou pelo menos nunca o são completamente.

Quanto ao aspecto da performance ser, de certa maneira, a «arte do efémero», prende-se com o facto de ser uma obra que é rapidamente assimilada. O que, numa sociedade de consumo, me parece perfeitamente natural e integrado no contexto social.

3.

: OU A POESIA INTERACTIVA

Na década de 60, a poesia concreta aplicou determinadas soluções formais, começando a explorar a estrutura espacial da página, e a proporcionar outras leituras para os signos semânticos.

Nos anos 70, a poesia visual recorreu a uma variedade de signos imagéticos, que alargaram os horizontes da poesia a outras interpretações. Mas ao utilizar o livro como suporte quase que exclusivo, a poesia visual ficou limitada precisamente por esse facto. Por exigir apenas do leitor um esforço de percepção visual.

Em finais dessa década, a poesia deixou de ser predominantemente visual, no sentido do poema impresso na página, para ser algo mais. Algo que começou a exigir do leitor o uso integral dos seus sentidos. «Como podemos utilizar todos os nossos sentidos ao mesmo tempo, podemos receber informações simultaneamente por todos os canais sensoriais.», escreveu Jeanne Martinet.

Foi o rápido desenvolvimento dos meios de comunicação, e a exploração das suas potencialidades tecnológicas e especificidades técnicas, colocadas ao alcance do poeta para este se exprimir de uma forma mais completa e complexa, que provocou a necessidade da utilização sincronizada dos sentidos e do seu relacionamento, para uma melhor percepção do acto poético.

Esta atitude veio alterar por completo a noção tradicional de poesia, e a própria denominação «poesia visual», por limitativa, deixou de estar adequada a determinadas realidades poéticas.

Neste momento a poesia é mais informacional no sentido da informação pela informática, é mais cibernética no sentido de um envolvimento da máquina na mensagem, é mais integracional no sentido de integrar em si o uso de materiais e de técnicas/tecnologias diversificadas, é mais relacional no sentido do inter-relacionamento dos canais sensoriais, e mais interactiva no sentido de interaccionar esteticamente todos estes aspectos.

Interactiva porque todos os componentes do poema são o resultado de uma (inter)acção conjunta entre si. Interactiva porque cada um resulta naquilo que os outros são e dele faz. Interactiva porque a poesia age pela reacção dos diversos factores inerentes ao acto poético. Poesia interactiva pela actuação integrante e interagente, a todos os níveis estéticos e informacionais. Interligados. Interassociados. Interpenetrados. Intertextuais.

Esta poesia que considero interactiva, não se pode pressupor de nova num sentido de ruptura, mas sim o resultado prático e efectivo da evolução de um determinado tipo de poesia com características experimentalistas.

Fundamentalmente pretendo que se compreenda que tem havido e que continua a haver uma evolução na poesia e na(s) forma(s) de esta ser veiculada. A poesia evoluiu para algo que é mais que o simples valorizar do aspecto visual do poema. Evoluiu para uma interacção activa e criativa dos sentidos por intermédio dos meios de que o poeta se apropriou, e da sua capacidade de produção e disfrutação do poema.

Os anos 80 são realmente os anos do simultâneo, os anos do compacto, os anos do maior número de coisas no mais curto espaço de tempo. É imperioso que todos os nossos canais sensoriais permaneçam alerta para interceptar o que nos rodeia. E que saibam relacionar esses dados. A poesia combate com estas armas. Por uma espécie de sobrevivência. Por um rasgo de inteligência e do mais puro instinto. Para continuar a ser.

4.

POESIA: OU A INTER-RELAÇÃO DOS MEIOS DE EXPRESSÃO

O futuro pertence às mais recentes tecnologias, e a poesia irá acompanhar este desenvolvimento explorando, na medida do possível, todas as capacidades que os novos meios de expressão proporcionam. O poeta, como qualquer outro operador estético, terá que se actualizar para empregar as linguagens e os meios do seu tempo, e intervir intensamente nas questões que constantemente se nos colocam.

Sabendo que meios como a fotografia, a fotocópia, a performance, o video ou o computador possuem uma linguagem própria com possibilidades a serem exploradas, torna-se evidente que os caminhos da poesia passarão (já passam) por aí.

Com esta variedade de meios para veicular o seu trabalho, o poeta interactivo vai utilizá-los, quer individualmente, quer interligados ou integrados uns nos outros, para no conjunto potenciar a capacidade de transgressão do poema.

Também se compreende que não se dedique exclusivamente a um desses meios, porque cada qual codifica e veicula a mensagem/informação segundo as suas características e, por essa razão, o poeta servir-se-á daquele ou daqueles que em determinado momento for(em) mais adequado(s) a transmitir uma dada intenção.

Comparativamente aos meios tradicionais de veicular a poesia, as novas tecnologias têm um maior poder de concentração e de quantificação da mensagem. Como exemplo poder-se-á falar da televisão que apenas em algumas horas de emissão veicula um manancial de conhecimentos (e também um ideologia) superior ao de muitos dias de leitura. Por um processo mais envolvente e criativo e, sem dúvida, mais excitante, até porque estão vários sentidos a canalizar esses conhecimentos. E assim como a televisão, o video ou o computador, as comunicações por satélite ou a transmissão electrónica da mensagem.

Torna-se, pois, evidente, que a poesia também participará nesta revolução tecnológica para que, mediante uma acção interactiva, possa proporcionar uma multiplicidade de novas percepções à sensibilidade dos sentidos.

(Publicado no livro “POEMOGRAFIAS- Perspectivas da Poesia Visual Portuguesa”, edição Ulmeiro, Lisboa, 1985).

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